Artigo: A Busca pelo Sentido


Existe uma verdade a partir da qual deveríamos nos guiar? Há uma conduta moral acertada, um valor essencial a orientar nossas ações pelo mundo?
A cada tempo no caminhar da existência humana houve uma verdade a orientar a conduta. Nos dizem a todo tempo como somos e como devemos ser. Parece precisar existir na tessitura do espaço tempo que acomoda nossa existência uma verdade fundamental, necessária, um elemento primordial qualquer que propicie uma convivência harmônica em sociedade.
Um mundo sem ordem moral parece sem finalidade e sentido. Mas e se não existir de fato um sentido para o mundo, o que direcionaria ou orientaria nossa conduta? Sem uma orientação, não se trataria então de um mundo sem esperança e niilista. O absurdo de um mundo sem ordem moral é possível?
Estas questões, muito atuais, são ainda questões que repetem estruturas antigas e estão na base dos significados que construímos e de nossa forma de ser e estar no mundo.
Podemos procurar um elemento qualquer que nos ajude a criar os códigos morais de conduta universais que tanto desejamos e que parece mesmo que necessitamos. Mas talvez esteja no resultado da crítica a essa busca, a essência de uma ética natural, forjada na abertura para o mundo que somente a crítica a ele próprio é capaz de criar. Uma crítica à própria racionalidade submersa no tempo que abriga nossa subjetividade. 
O texto aqui redigido tem a intenção de mostrar, resumidamente, como no decorrer da história ocidental sempre houve uma tentativa de essencializar o ser humano, o que parece mais uma saída pela via mais fácil, para se criar um fundamento para existência e sentido para um mundo onde se possa ter esperança, em oposição ao niilismo que insiste aterrorizar.


Nossas Heranças


Os filósofos pré-socráticos encerravam na razão a maneira correta de enxergar a mundo. Somente a razão o explicaria. Mas Platão alerta que essa realidade é uma ilusão, o mundo na verdade é equívoco, sombras (crenças, certezas, preconceitos) que vemos e vivenciamos, aprisionados em uma caverna. A compreensão de como são as coisas, efetivamente, somente é possível fora da Caverna, está em algum lugar que para Platão, é o mundo das idéias, das formas. Somente a saída da caverna apresenta essa realidade que aí sim, orientará, no retorno à caverna, a atitude ética capaz de construir uma ação correta no mundo.
Para o filósofo o mundo das idéias carrega consigo as verdades inspiradoras dos valores que devem guiar nossa existência, valores desconhecidos, cujo papel do filósofo é mostrar o caminho para sua descoberta. O filósofo seria aquele a nos ascender ao conhecimento.
Nesta ilustração há uma separação entre o mundo aparente e o mundo real, onde se considera um processo de elevação em direção ao conhecimento, que carrega em si, o conjunto de valores a serem aplicados no modo de ação correto diante do mundo. Estes elementos de um processo que nos direciona ao conhecimento dos valores adequados eticamente têm total importância no cenário que está por vir, quando acaba se fundindo com a visão de mundo judaico-cristã.
Santo Agostinho faz uma releitura de Platão[1] apontando uma verdade fundamental acessível a todos para a qual devemos voltar à atenção, verdade a orientar nossa ação no mundo. O sentido, a lógica dos valores a serem os legítimos modelos de comportamento não são sabidos por conta de uma ignorância da verdade. A verdade, numa alusão clara ao pensamento platônico, se converte na revelação do mundo espiritual cristão. Uma rede de significação que tem como base de apoio agora a figura humana do Cristo, que ocupa o anterior papel do filósofo como caminho para o conhecimento. Cristo suplanta o mundo aparente do pecado (mundo real), apresentado a moralidade implícita na verdade (mundo das idéias), produzindo assim as ações da verdade revelada e um sentido para a existência.
O homem da modernidade que se entende em oposição aos elementos religiosos da herança medieval, parece representar a mesma estrutura descrita anteriormente, mas refletida agora no mundo do saber científico e das ideologias que vigoram. Neste momento as incertezas se voltam para o sujeito, novo limiar da verdade, quem irá de fato produzir e contribuir para o significado do mundo e da verdade. Na modernidade há uma forte construção de identidade e sentido: um cidadão tem que ser justo, trabalhar, respeitar a lei para contribuir com as ideologias democráticas, de justiça e liberdade, somente assim produzindo os valores adequados a uma sociedade mais igualitária, democrática. Um “novo” velho sentido para o mundo, que as democracias modernas irão absorver.
Estas ideias que parecem repetir fundamentações muito antigas caem na desconfiança na contemporaneidade, alçando ao patamar do desencanto o projeto da modernidade, onde dúvidas transitam no mesmo espaço das ideologias democráticas e de todo o conhecimento científico adquirido. No pós-guerra essas dúvidas ganham força e o mundo contemporâneo começa a se ver à esgueira de pilares construídos no decorrer da história que começam a desmoronar. Justiça, liberdade e democracia? São de fato verdades ou meras possibilidades, muito relativas, de um sujeito que tenta avidamente produzir sentido para sua existência?
Talvez a maior herança da modernidade seja de fato o apelo ao indivíduo, à subjetividade que caminha lado a lado à história. Entender-se como sujeito que pode agir em prol de um mundo melhor, por ser ente que existe porque pensa, porque é, deixa na herança cartesiana um tom quase poético. Nossa racionalidade como prova de existência e todas as possibilidades que essa elevação nos apresenta. Porém pensadores como Shopenhauer e Nietzsche, tidos como filósofos da suspeita[2] desenham um novo arcabouço para o sujeito racional, levando em conta outras facetas de nossa subjetividade. Não seríamos também constituídos de vontade, instintos, além do bem e do mal? Até que ponto somos capazes de lidar com nossos afetos, com os desejos de nosso corpo? Não haveria uma série de coisas ocultas por trás de nossas moralidades com as quais não conseguimos lidar? Será que a genealogia da moral que optamos por seguir os pressupostos, sem questionamentos, é efetivamente a totalidade de nossas vontades?  Caso não seja, não estaríamos assim, falsificando a vida? Sabemos porque fazemos o que fazemos ou somos somente dominados pela lógica de nosso tempo?
A crise da cultura que estas desconfianças provocam, reascendem questões sobre se há de fato uma verdade, pressupostos morais e éticos passíveis de acomodar nossas relações sociais ou mesmo alguma consciência individual do ser. Será mesmo que há alguma finalidade, algum sentido para o mundo que construímos e que nos constitui? Se não há finalidade, como lidar com essa verdade? São as principais questões que hoje nos colocamos.
Mas e se não houverem de fato princípios ou fundamentos, ou mesmo se eles existirem, mas nós não possamos desvendá-los, como prosseguir?

Sofrimento e seu significado

Os gregos encaravam a tragédia da vida com poesia. Nós encaramos a tragédia da vida inventando significados para ela. No decorrer da história ocidental, principalmente, da cultura judaico-cristã, dar sentido ao sofrimento parece a resposta para todas as dúvidas. O sofrimento é penalização de uma verdade que não é compreendida. É quase uma entidade viva a se deparar com o homem e desafiá-lo a escolher o plano de Deus, a dimensão espiritual para além da vida, em contraposição aos desejos do corpo. Uma escolha que re-significa a existência, na possibilidade de existência futura nas promessas do além-vida. E mesmo que não nos voltemos para o viés religioso, o sofrimento é justificado, na escolha pelas causas justas do mundo. E assim inventamos sentido e reafirmamos as mesmas estruturas, sem imaginar a menor possibilidade de um mundo sem finalidade. Porque pensar um mundo sem finalidade é não encontrar justificativa para o sofrimento, o que seria absolutamente insuportável.  
O último homem de Nietzsche é incapaz de criar, amar, desejar, e apenas inventa uma verdade artificial para se enganar a cerca dela. Mas a questão que se coloca é: e se o sentido da vida desse último homem é viver exatamente desta maneira? Será que ele é de fato incapaz de ser diferente, ou somente um covarde a não encarar de frente suas escolhas? Se caso optasse por assumir a totalidade de suas possibilidades, como diria Heidegger, como viver com elas num mundo onde as redes de significados são tecidas por linhas que dificilmente se arrebentam? E mesmo que ele queira pagar o preço: até o preço parece ter sido capitalizado pela ordem do mundo.
Até mesmo o sem sentido do mundo parece estar imerso em uma ordem de sentido que  paira sobre nossas cabeças, tendo como resultado somente uma possibilidade de fato: a dúvida. É somente por intermédio dela que conseguimos formular a crítica necessária capaz de nos tirar do abismo em que nos colocamos: o abismo da ocupação demasiada com as redes de significados que construímos ao longo da história, nos aprisionando, na história de nosso tempo presente.
Pensar o tempo presente é pensar as especificidades de nosso lugar. É entender como construímos uma cadeia de significados que nos trouxe onde estamos. E o que parece nos mostrar as questões desse tempo, e ainda as futuras histórias do tempo presente, ou as histórias do tempo presente do passado, é que nossa racionalidade tão festejada, condição que parece ser meramente evolutiva, se abre no tempo de um conhecimento específico para nos chamar à compreensão de nossa condição terminal. O tempo presente e todas as suas facetas implícitas em sua história parece ser somente um emaranhado de benefícios ou malefícios produzidos por um entendimento racional da realidade que na verdade quer nos desviar por um trajeto de fuga, do que precisaria ser o objeto a ser pensado: a inexistência. A falta de significado que nos coloca todos os dias diante do mergulho no consumismo, na enlouquecida gana por informação, no desprezo à ociosidade tida como o avesso da produtividade, num mundo onde tudo tem que acontecer cada vez mais rápido, funciona como maneira de dar significado à existência, mas parece mais uma forma de aplacar a angústia da verdade da inexistência. A inexistência que se transfigura no vazio da existência em si.
Talvez sempre tenhamos vivido o niilismo, por estarmos amarrados e amordaçados pelo desejo do sentido, reprimidos pelo monstro da moralidade, da normalidade, da simetria e da ordem inventada, que insiste acompanhar nossa racionalidade pelo tempo. Nosso maior monstro parece ser o desejo secreto de ser “normal", de obter esse bem moral. Digo bem moral porque, tanto os bens capitais quanto os morais estão na mesma esfera no que diz respeito aos desejos humanos. Uma esfera de sentido que inventamos para lidar com a falta de sentido, com o niilismo que parece sempre ter estado alí. Nessa esfera de busca por sentido, ser apenas perde a razão para dar lugar à sociedade do ter: sejam bens morais, ou bens materiais. Precisamos ter simplesmente, porque não sabemos quem somos e o que fazer com esse desconhecimento.

Nossos demônios somos nós

Buscamos a simetria em todas as coisas. As próprias religiões monoteístas, nas culturas do mundo inteiro, identificam o divino à ordem e à simetria. A estética da ordem natural das coisas, a beleza do mundo natural, direciona nosso pensamento assim como nossa ciência, a buscar a organização perfeita, seja no cosmos, seja na vida prática em nosso planeta. Parece bem da verdade então que a assimetria incomoda, e muito! E com nossas relações e construções de significado, não poderia ser diferente.
Porém, parece bem claro que todas as implicações do ser humano como multiplicidade e as divergências que ela causa nas nossas produções de significado, nos levam a observar um mundo cada vez mais assimétrico. Estaria nessa verdade a falta da própria verdade, de fundamento e finalidade para a nossa existência? Uma falta de sentido com qual temos convivido desde sempre?
O maior monstro que nos acomete é nossa tentativa exagerada de se enquadrar na normalidade, na simetria da moral, dos valores e verdades que viemos construindo no decorrer de nossa história. Pensar em se desfazer de todas as nossas construções possivelmente seria um tiro no próprio pé, uma briga com a própria constituição, uma guerra sem fim com a cultura e a própria subjetividade amarrada a ela. Se isso fosse totalmente possível, certamente nos levaria a uma desordem e falta de sentido ainda maiores. Porém, somente essa disposição, que é uma tentativa sutil em meio ao conjunto complexo que somos, é o que de fato transforma o mundo fazendo dele essa infinidade de possibilidades que cria o sentido na falta de sentido.
Ter em mente que até nossa crítica é a crítica do homem de agora, imbuído das demandas desse tempo, parece a saída para uma sociedade mais viável em termos de convivência, já que a dúvida é a fonte inesgotável de criação de possibilidades e compreensão das diferenças que carregamos. Nos compreender imersos em mundo sem verdades prontas e acabadas, nos ajudaria a construir uma ética que mesmo em um mundo sem sentido, promoveria bem estar no encontro das diferenças.


Texto: Luciane Trevisan Leal


Inspirado na provocativa palestra do Prof. Leandro Chevitarese (PUC Rio/ UFRRJ), no Café Filosófico em 02 de Junho de 2011.


[1] Nietzsche ressalta que há uma cristianização do pensamento platônico. Em Agostinho aparece a mesma estrutura, que separa o mundo aparente do verdadeiro, sendo agora o mundo aparente o do corpo, do pecado, e o mundo verdadeiro as certezas cristãs com seus valores fundamentais que dão sentido ao mundo.
[2] Freud influencia profundamente essa nova forma de encarar o sujeito colocando em questão as condições da inconsciência como motor para tomada de atitudes e comportamentos, trazendo à tona um lugar dentro da psique humana até então desconhecido. 






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