O Massacre de Realengo e nossos Monstros






Parece não haver mesmo palavras para definir a mistura de sensações com a última aberração que assistimos insistentemente pelos meios de comunicação nos últimos dias: o massacre na escola de Realengo, no Rio de Janeiro. Raiva, indignação, tristeza, mas talvez a maior sensação e mais horrível de todas: medo! Como compreender a verdade gritante que a qualquer momento uma mente ensandecida possa atravessar o seu caminho, o meu caminho, a vida das pessoas que amamos, a vida de crianças. Meu Deus, crianças! O que leva um rapaz jovem, com a vida toda pela frente, a engendrar, de forma calculada e maquiavélica, a execução em série de crianças?
Quando vivências sociais infelizes vêm de encontro à estruturas mentais desnorteadas, o saldo é tristeza e perplexidade. Pessoas capazes de tamanha atrocidade são perturbadas mentalmente certamente. Mas não se pode deixar de salientar que mesmo psicopatias são alimentadas e legitimadas por uma doença que não é somente individual, mas social: covardia. Uma incapacidade de enfrentar a vida mas com grande habilidade para colocar no buraco da alma qualquer discurso fascista e egoísta que preencha o vazio e ajude a inflar o ego enfermo.
Mentes alucinadas e ensimesmadas quando apresentadas à discursos fundamentalistas e preconceituosos encontram nessas falas a “salvação” para o buraco individual e social em que se encontram, buraco este, na maioria das vezes, cavado por outras mentes, não menos adoecidas pelo meio em que vivem ou criação, mas talvez biologicamente mais adaptadas a ele, e por isso consideradas mais “fortes” ou racionais. Estas últimas, que deveriam desencorajar certos discursos que perturbam o senso crítico – ainda mais nos casos de quem tem pouco ou nenhum –, ao contrário, nutrem as turbas de carentes incapazes de conviver com suas limitações e as dos outros, com os desapontamentos e rejeições vexatórias nas relações, com as frustrações que qualquer um que está no mundo está sujeito a sofrer.
Ao menos a parte conhecida da história de Welington Menezes, é a mesma de muitos, inclusive de conhecidos meus dos quais já tive e tenho medo de determinadas atitudes. Pessoas introvertidas (não falo da timidez natural), isoladas, que encontram na solidão e fuga das vivências frustrantes, uma forma de não ter de lidar com o limite do outro que não podem compreender ou controlar. Pessoas que entendem não estar de posse absoluta das próprias emoções que emanam do contato com o outro, este ser estranho, que poucas vezes estará na mesma sintonia, e por isso mesmo perturbará a ordem de seu próprio descontrole habitual.
O perigo é que pessoas assim, que vão se isolando cada vez mais e mais em seu mundinho de reclusão, vão pouco a pouco inventando uma realidade própria. Percebem o mundo externo pelos sentidos como qualquer outra, o organizam à sua maneira como qualquer pessoa, porém, escrevem suas representações com base na leitura de uma realidade distorcida. E quando esse mundo externo ao seu isolamento apresenta um discurso que os transporte de alguma forma para fora de sua reclusão, incluindo-os de alguma maneira no lugar em que queriam estar e serem aceitos, tapando assim o buraco de sua alma e gerando os símbolos que necessitam para dar sentido ao que vêm e não compreendem ou controlam, eles se entregam de cabeça àquela apreciação e razão para existência, no meio que acreditam agora ser possível pertencer. Erguem ao patamar da adoração os símbolos que dão significado àquilo que vêm. Identificam neles o que os agrega, o que lhes traz um significado qualquer de pertencimento, mesmo que seja pertencimento no seio do repugnante, da covardia.
Os símbolos que vão sendo incutidos, que criam essa sensação de pertencimento a alguma coisa, que todos nós procuramos – símbolos que doentes mentais também buscam –, são construídos pelos discursos correntes, de toda a sociedade, são forjados pelas nossas crenças e certezas. Se nossas crenças e certezas unem, facilitam a convivência, agregam valores de tolerância e amor, contribuímos na constituição de crianças, futuros adultos, comprometidos com uma convivência social pacífica. Mas se ao contrário nossas crenças segregam, enfatizam a diferença como alguma coisa a ser intolerável ou feia, construímos esse tipo de monstro, que pode ser doente mental ou não.
Welington Menezes certamente tinha problemas mentais, até porque matar criancinhas com a frieza de uma pedra ultrapassa a qualidade da perversão de um neurótico apenas. Porém, não é a doença mental que torna alguém monstruoso. Todos nós, com nossas crenças e verdades banhadas pela nossa covardia ao encarar o diferente de nós – e porque não dizer, até o nosso diferente íntimo –, é que construímos nossos monstros exteriores… e também os interiores.

Texto: Luciane Trevisan Leal

Continue lendo...
 

  ©Template by [ Ferramentas Blog ].

Voltar ao TOPO