Artigo: O Descontrole da Técnica e da Vontade


Por mais que nos encontremos envolvidos por ela, dependentes dela e aparentemente gratos por sua condição de nossa morada e provedora de nossas possibilidades de existência, parece que as escolhas da natureza promovem também um incômodo que insiste transitar por entre uma relação que acredito, todos concordem, deveria ser harmônica. Homem e natureza, personagens separados na contemporaneidade, têm certa dificuldade de interagir! Parece haver uma confusão, uma inconformidade nos papéis que cada um deles deve encenar no palco do espaço-tempo que em sua tessitura acomoda a existência.
A questão que nos salta e mobiliza a filosofia da ciência, absorvendo obviamente discussões éticas, não poderia deixar de voltar sua atenção para o que se refere ao controle ou descontrole da técnica pelo homem. Até onde temos o direito de nos apropriar das leis naturais para interferir na ordem natural das coisas? Complementaria a questão ressaltando: temos o direito e (ou), habilidade suficientes para ocupar aleatoriamente o lugar da divindade que matamos? O que mais podemos inventar e destruir?
Não tendo como deixar de dar o devido crédito ao legado cartesiano, o homem mais uma vez é o princípio da dúvida e o fim de qualquer proposição.
A história da ciência nos conta que é natural do homem o encanto pelo conhecimento e o espanto que causa a dúvida. Mas parece que nos primórdios nossa busca procurava se concentrar apenas – o que já é muito –, na compreensão do funcionamento das coisas. O que se desenrola no alvorecer da sociedade moderna é uma mudança de nossas demandas, estas que agora tendem a ultrapassar o desejo pelo conhecimento das coisas se rendendo ao ensejo do controle delas próprias. Porém, juntamente com a vontade do controle e certeza sobre tudo, caminha ainda a duvida sobre o próprio controle que se deseja. Onde e quando deve ser desenhada a linha que interrompe e solicita a reconfiguração de nossas vontades e desejos? Esse espaço limítrofe deve existir?
Bem da verdade, a evolução da ciência parece para muitos acompanhada da dissolução do homem, do humano, em alguma coisa que talvez nem a ficção científica seja capaz de pensar. Mas será que o desenvolvimento da técnica na atualidade, em termos de obtenção de realização dos desejos humanos, difere tanto de nossos antepassados? 


O Acontecer do Dasein

Martin Heidegger, filósofo contemporâneo, afirma que a relação do homem com a totalidade do mundo é essencialmente técnica. Mas o que é esse mundo e como se dá a relação do homem com ele?  O que o filósofo entende por totalidade do mundo?
Martin Heidegger foi leitor dos pensamentos de Husserl, que focava sua reflexão numa discussão sobre as filosofias da consciência trazendo à tona a analítica sobre a existência dos fenômenos. O que com Husserl se quer discutir é como os entes se mostram, existem e são, como os entes se apresentam à consciência. A fenomenologia, bastante presente no pensamento contemporâneo, é definida a partir destas bases. Mas para Heidegger, o modo de ser de cada coisa difere, na forma com que cada uma delas se apresenta à nossa consciência. E estas formas variadas de ser de cada coisa aparecem, se mostram ou se ocultam, a um determinado ente: o homem.
Heidegger constrói sua filosofia a partir de uma proposta de reabertura da pergunta do sentido do ser, que como defende o filósofo, fora questão abandonada pela tradição filosófica. E para que haja de fato a reabertura dessa pergunta há que se indagar sobre o modo de ser do ente que faz a pergunta pelo ser, já que é somente nele que a questão se formula.
O ente que pergunta pelo ser, para o filósofo, não é somente uma consciência, mas uma consciência do mundo, no mundo. É o mundo sobre o qual ele pensa e age, com o qual ele interage. Esse ente é e está no mundo, uma rede de significados que dá a ele sua totalidade. Tudo aquilo que o ente experimenta, que abriga o ente, o conjunto de suas vivências, é o seu modo de se perceber, o seu lançar-se no mundo. A essa totalidade Heidegger chama Dasein[1].
O Dasein nomeia o mundo e se percebe como ente lançado nesse mundo que já existe, que detém seus valores construídos, que tem história. Dá significado ao mundo na medida em que acontece nele. Compreende, conceitua, interage com o mundo, essa grande reunião de entes. Vivencia a reflexividade, o processo interativo com o mundo, criando novos significados para ele, constantemente. Acontece no mundo e faz o mundo acontecer. É homem no mundo e mundo no homem, é acontecimento do ser-aí.
Essa inovação na fenomenologia leva a um afastamento das filosofias da consciência[2] para no lugar ressurgir a reabertura da pergunta pelo sentido do ser que substitui a ideia de consciência pela ideia de Dasein. Para Heidegger, se já não bastassem as razões metodológicas para a reabertura da pergunta, para além delas o filósofo acreditava ser a reformulação da questão do sentido do ser a mais proeminente e necessária, já que o que nos define como homem é o ser. A questão do sentido do ser para o filósofo carrega assim, uma dignidade em si mesma.
Levando em conta a afirmação de Heidegger sobre um mundo que se torna cada vez mais técnico, se fizermos uma ponte ligando as discussões éticas que envolvem o desenvolvimento das tecnologias atômicas e da biogenia[3] por exemplo, parece haver uma necessidade implícita de que a pergunta pelo o sentido do ser retorne com toda sua força.


Patrimônio da Humanidade: Razão e vontade

“A Natureza torna-se um gigantesco reservatório, uma fonte de energia para a técnica e para a indústria” (J. Habermas)

As escolhas da natureza, tanto para o que nos parece bom quanto para o que nos parece ruim, durante bilhões de anos proporcionaram ao homem uma estabilidade, uma regularidade que permitiu nossa simbiose com o entorno, uma troca a partir da qual nos compreendemos, criamos nossos códigos morais e construímos nossa história. Porém a natureza que nos permite ser, também nos condena à morte e nos lembra a todo o tempo o quanto somos vulneráveis. O desespero do homem, nossa angústia em face da possibilidade do desaparecimento, nos impele a necessidade de controlar aquilo que pode nos destruir. Seria somente uma luta pela preservação, biológica, instintiva, própria de todos os animais, porém, carregamos o que nos difere das outras espécies. Uma vantagem evolutiva, uma característica que nos capacita construir... e destruir: a racionalidade.
A faculdade da razão é a especificidade que nos permite um questionamento que extrapola os limites da possibilidade de desaparecimento de nossa espécie. A razão permite constatar e questionar uma verdade perturbadora, que é a certeza do desaparecimento como indivíduo no espaço-tempo, como sujeito que pensa, que existe, que sabe que é. O Dasein que constantemente re-significa o mundo, refaz então seus códigos morais e éticos e os reinventa de modo que possa se permitir buscar na natureza que quer proteger – mas da qual também se protege –, a pedra filosofal[4]. A racionalidade que nos faz Dasein, pretende substituir, criar o mundo de uma outra maneira, em prol de nossa permanência, em prol da facilitação da nossa preservação como espécie, mas para além disso, talvez tenha um objetivo realmente ousado que possa garantir o maior desejo humano: a eternidade de nossa existência subjetiva.



“(...) não podemos excluir o fato de que o conhecimento de uma programação eugênica do próprio patrimônio hereditário limita a configuração autônoma da vida do indivíduo e mina as relações fundamentalmente simétricas entre pessoas livres e iguais.”.
(J. Habermas)

Parece que esse desejo de permanecer acontecendo, existindo, sendo ele exteriorizado ou latente na condição humana, esbarra na totalidade do que somos, esta que ultrapassa as fronteiras da biologia, para fazer morada em edifícios cujos alicerces são construídos nas bases da cultura. Nossos códigos morais e éticos são também característica de nossa condição humana como salientado por Habermas: “A manipulação dos genes toca em questões relativas à identidade da espécie, sendo que a autocompreensão do homem enquanto ser da espécie, também compõe o contexto em que se inscrevem nossas representações do direito e da moral” (J. Habermas). Porém, a racionalidade cartesiana da qual somos herdeiros, que torna possível a compreensão de nossa condição humana dentro destes códigos, é também responsável por nos mostrar que somos muito pouco autônomos na escolha do que nos define como sujeito. Por mais únicos que sejamos, somos relegados às demandas de nosso tempo, o real mentor de nossa identidade ornamentada pela razão.   
O mundo estar se tornando extremamente técnico parece mais uma etapa de uma linha tênue de transição histórica[5] que carrega sempre com ela as transformações com as quais ainda não nos identificamos, justamente porque transitamos entre limites pouco específicos nos quais ainda não nos compreendemos acontecendo. Como Heidegger ressalta, somos um acontecimento, um ser aí, homem e mundo no tempo de agora. 
Nossas visões de mundo são embasadas em identidades e juízo da realidade construídas na história do ser acontecendo. Assim se forjam nossas dúvidas em relação à nossa própria apreciação do real como também aos limites que nos devemos impor. As transformações que vivenciamos e as necessidades que construímos em virtude delas são fato de nossa existência, do acontecimento do mundo, do vir a ser que somos e ao qual estamos sujeitos.


A Vontade que acontece


Levando-se em conta o Dasein que somos e acontece, a realidade atual não aparenta ser mais assustadora que antes do desenvolvimento da física e da tecnologia em meados do séc. XX, mas parece sim ser, nada mais nada menos, que uma continuidade do permanente objetivo de colocar em prática os desejos e vontades humanas. Parece razoável pensar que não se deve fixar o olhar nas diferenças das técnicas dos gregos antigos e das técnicas atômicas atuais, a nanotecnologia e a biogenética ou biotecnologia, mas sim na única coisa que parece imutável na rede de significados que é o homem no mundo: a vontade humana, motor de construção e destruição. O que sugere a história da evolução tecnológica, é que um processo de desenvolvimento que pode parecer linear a princípio, faz na verdade emergir uma ruptura com a forma com que lidamos e interagimos com a natureza, talvez significando uma tentativa de substituição da natureza como ela é, para uma outra natureza, inventada, no intuito de que permaneça sob controle, sob o domínio de nossa vontade.
Como afirma Heideigger “(...) propriamente estranho não é que o mundo esteja se tornando completamente técnico. Mais estranho ainda, é que não estamos preparados para essa transformação” (M. Heiddeger). Não seria o esquecimento do sentido do ser a razão deste despreparo? Talvez não seja inviável imaginar que a pergunta relativa ao ser deva reaparecer com força de modo que com ela possamos melhor nos compreender nesse tempo e por conseqüência entender o porquê de nossa entrega ao domínio e desmandos da técnica? De forma concomitante à pergunta do sentido do ser poderemos questionar de fato: para quê tudo isso?!
A vida proveniente de uma decisão eugênica não parece ser menos vida que aquela contida em um embrião onde se pretende excluir determinado composto multicelular. Surpreende a idéia de que deixaremos de ser iguais ou que perderemos nossa identidade, quando talvez o que continuará prevalecendo será a indubitável constatação de que alguns são “mais iguais que outros” e de que nossa identidade é uma construção de nosso tempo. Surpreende também que o pensamento contemporâneo ainda se choque com todas as interferências do homem que parece ter como premissa a tão repetida frase “brincar de Deus”. Parece de fato não haver surpresa nenhuma nos desejos insanos de domínio sobre a natureza, já que eles sempre pairaram lado a lado ao nosso terror pela possibilidade – ou certeza – que a não existência promove. Parece não haver porque mensurar um passado glorioso de desenvolvimento científico e o presente de uma ciência que destruirá a natureza humana. No final, o que seria mesmo a natureza humana?
A pergunta que coloca em foco os limites do desenvolvimento científico parece em verdade necessitar uma nova formulação que ultrapasse a questão da técnica em si. Porque precisamos disso tudo? Precisamos reformular essa pergunta, com base numa resposta que já temos: o medo de deixar de ser, de deixar de acontecer. Seria a resposta que temos a razão de reformulação da pergunta que nos devemos.


Reformulação da Pergunta

Parece não haver certo ou errado, enquanto que nos achamos como sujeitos no tempo... e ao tempo! Parece não existir a possibilidade de uma regra em absoluto, verdadeira, ou uma ética universal – por mais necessária que ela se faça. O que parece haver são apenas formulações de exigências comuns que vigoram no agora, e constatações, por certo cada vez mais velozes, de leis naturais passíveis de modificação porque vinculadas ao tempo de nossas necessidades, diga-se, de nossas inventivas possibilidades em meio ao acaso que somos. O mundo pós-contemporâneo, pode parecer absurdo dizer, não parece tão distante do tempo de nossos antepassados que deram o pontapé para todo o conhecimento que temos hoje. Por mais que seja óbvia a diferença, para não parecer tão absurda a comparação, me explico: a técnica de que nos orgulhamos, e da qual ao mesmo tempo nos retratamos, parece ser tão somente, mais uma característica de nossa condição humana que deixa a vontade invadir a racionalidade tão festejada. A racionalidade que não nos conteve, ou nos trouxe a um lugar melhor que o de nossos antepassados místicos. A defesa de uma ciência racional em contraposição à qualquer verdade mística, parece ser nada mais do que uma ciência permeada pelas vontades... muito humanas.
O homem se compreende no tempo e por mais que queiramos deter o controle de tudo que nos envolve, o tempo não somos capazes – ao menos até onde se sabe –, de controlar. O tempo dita as regras de nossa existência, conduz nossas decisões e nos molda de acordo com sua prerrogativa. Desenvolvemos nossa ciência no tempo de determinada apreciação do real, de determinada necessidade de nos compreender em meio ao entorno, mas parece que quando forjamos nossa crítica ainda insistimos em não fazer conta de que somos constituídos pelo tempo do homem de agora, o que não poderia deixar de abarcar, o homem crítico de agora. O Dasein constituído e constituinte.
A questão que deveria estar no cerne do entendimento sobre a necessidade de limites ao desenvolvimento científico, parece estar no complemento da obra de M. Heidegger cuja descontinuidade reflete nossa incapacidade de lidar com o limite que para nós é certamente o mais significativo e por isso mesmo o motor de todas nossas conquistas e percalços do ser aí: a possibilidade, ou certeza, da não existência.
Retornemos à raiz de toda a história do conhecimento no ocidente. Esmiucemos a história da filosofia desde os pré-socráticos até agora e façamos uma varredura no HD de nossa história tentando decodificar o ser codificado na tradição filosófica. Ele está ali, está aqui. Não escapa das possibilidades e limites que estão no tempo de sua expressão.
A pergunta que nos devemos é anterior à ciência que só faz responder às nossas necessidades de permanecer no lugar que conhecemos. Quem somos e por quê? A pergunta que insiste querer permanecer, de onde insurge todos os desdobramentos.



[1] Dasein, uma abertura às possibilidades, estar lançado na existência. A própria existência que acontece, homem e mundo que não se dissociam. Ser-aí.
[2] Difere das filosofias da consciência de Kant, Hegel, Shopenhauer e Hurssel, na tradição filosófica. Consciência e ser não são a mesma coisa, já que o ser se apresenta à minha consciência assim como ela também se apresenta a mim
[3] Não serão apresentados argumentos relativas aos aspectos econômicos do mercado do mapeamento genético, o que por si só, já renderia uma ampla formulação discursiva.
[4] O mesmo que um elixir da longa vida, para os alquimistas.
[5] A idéia aqui não é fazer alusão a esta transição no tempo como parte de um processo de evolução (desenvolvimento, progresso), como na perspectiva hegeliana: história como uma linha continua com um ponto de chegada, onde o auge seria o progresso e concomitantemente, o fim da história.


Artigo: Luciane Trevisan Leal

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